sexta-feira, 20 de abril de 2012

A Ponte



          Acordar para mais um dia parecia um descomunal esforço para o homem velho. Suas pernas fracas não conseguiam sequer movê-lo direito pela casa, agora grande demais para um homem só; seus braços mal podiam se erguer para lavar o rosto repleto de vincos e rugas; suas mãos encurvadas eram como frágeis pinças para segurar objetos, já incapazes de finas manipulações.

Olhou-se no espelho do banheiro, ansioso para perceber alguma mudança, algo que o mostrasse que ainda podia viver, sentir, ser. Tudo permanecia como ontem, como anteontem e além; a mudança não veio. O que lhe assaltava era a sensação pesada de ser um fardo, um estorvo, tanto para si como para outros. Os anos que não foram em nada generosos só faziam pesar sua consciência: bebida, fumo, gula, excessos de todo tipo; os juros dessa conta ele sentia em seu corpo combalido e em sua alma.

O velho homem resolveu caminhar, mais uma vez, talvez pela última vez, em busca de um sentido, de um propósito.


          Em um lindo quarto, a jovem moça despertou para mais um dia repleto de coisas para fazer e gente para conversar; teria um encontro com amigas, sairia com seu namorado, estudaria e teria horas para escolher entre shopping, internet ou um passeio.
Ela arrumou-se, dessa vez, displicentemente. Olhou-se no espelho e não sorriu; seus lindos cabelos louros despenteados, sua pele alva arrepiada, seu corpo belo vestido com uma simples camiseta e calça. Ela não conseguia se concentrar em ser ela mesma, viver como seus amigos. Sua angústia a perseguia já a algum tempo, no entanto, ninguém percebera. Ninguém a via, a sentia. Não de verdade; e ela sabia. A dor e a consciência desse saber a estavam consumindo.
A jovem moça resolveu caminhar, dessa vez sem destino, talvez pela última vez, em busca de si mesma e de uma cura definitiva para sua angústia.


         Na caminhada, o velho homem pôde ver a vida se desenrolando lentamente perante seus cansados olhos e sentiu-se inútil. Sua passagem em nada afetava as pessoas ao redor, a não ser que resolvesse morrer e ser um estorvo para transeuntes, médicos e motoristas. “Por que não?!” - pensou ele. E seguiu resoluto até a velha ponte sobre o rio. Ali seria o cenário perfeito de seu último ato e sua história teria um fim, melancólico ou trágico, mas teria um fim. Esgueirou-se até o meio da ponte, apoiando-se na lateral. Poucos carros passavam, uma ou outra pessoa cruzando seu caminho. Resolveu contemplar a paisagem pela última vez, seus olhos lacrimejavam e seu coração parecia que ia explodir, vislumbrou o escuro das águas do rio, logo abaixo e segurou-se firmemente no parapeito pronto para se atirar.


          A jovem moça caminhou depressa, sem rumo certo ou intenção. Apenas sabia que devia chegar a algum lugar que chamasse a sua atenção. Os olhares libidinosos que recebia, as cantadas mal feitas dos rapazes, a buzina dos carros, a vida frenética da qual fazia parte: tudo parecia sufocá-la, tragá-la para um abismo interior. Incapaz de se compreender, de lidar com essa sensação, ela correu. Por pouco tempo, é verdade, mas correu. Alcançou o rio, a ponte e sentiu a brisa gélida das águas barrentas e escuras. “Seria tão simples?!” – pensou ela. E chegou-se ao parapeito. Olhando para baixo sentiu uma vertigem, uma atração quase magnética que a queria levar. Olhou ao redor e percebeu que fora ela e os carros havia apenas um velho homem do outro lado. Ele também olhava para o rio e parecia lentamente tentar erguer-se sobre o parapeito. 
A moça só percebeu o que estava acontecendo quando o homem conseguiu erguer uma das pernas e inclinou-se em direção ao rio. Ela não conseguiu pensar direito, apenas reagiu e lançou-se para segurar o velho homem. Por pouco um carro não a atropelara, passando muito perto e buzinando. Ela deu mais alguns passos, correndo – o tempo parecia arrastar-se - e seu único pensamento era: “Tem que dar”.


          O maldito osso da mão esquerda, quebrada décadas antes, resolvera doer agora, na hora em que ele precisava esforçar-se pela última e derradeira vez. Erguer a perna não foi fácil e agora seria só questão de desequilibrar-se para fora da ponte. Uma queda e o fim. Seria perfeito. Ouviu uma buzina, gritos e sentiu-se pender para o rio.
Mas o velho homem sentiu algo agarrar-lhe pelas roupas, em suas costas. Uma mão feminina o puxava de volta e ambos caíram ao lado do muro. Ela exausta com o esforço, apavorada de ter salvo o velho de se matar. Ele surpreso de ter alguém que se preocupou com ele, mesmo que momentaneamente.
Ambos cruzaram olhares, sensações fluindo e permeando o mero ato físico de se encarar. As lágrimas brotaram no velho, um sentimento de gratidão surgindo em seu coração, trespassando pelos olhos até a jovem moça. Ela surpresa consigo mesma, não acreditava que estava pensando em se matar, mas não deixou que outro fizesse o mesmo. Percebia que no fundo ela não queria isso, era apenas uma enganação, um erro que se revelaria fatal. Ela contemplava o velho e chorava, acompanhando suas lágrimas. Ela não sabia se ria por ele, por si ou pela situação; apenas deixou-se levar pela emoção do momento.
Depois desse momento de emoção, o velho homem apenas segurou a mão da jovem e beijou ternamente; levantou-se e seguiu devagar, caminhando com sua dificuldade, seu pesar, mas dessa vez renovado. Teria muito o que pensar sobre si e sobre a existência.
A jovem o viu afastar-se e só então percebeu que outras pessoas haviam parado para ver o que aconteceu. Recebeu felicitações por seu ato, foi ajudada a levantar-se e sorriu, mais para si do que para os outros. Voltou-se para o caminho de onde viera e seguiu caminhando para casa.

          Ao fim do dia, ambos perceberam que haviam recebido o que desejaram, seja como propósito, seja uma cura. Sentiram-se novamente parte de algo, parte de si, parte do mundo. Na dor da existência, todos tem algo a acrescentar. Na vida fácil se encontra um porquê viver, um propósito além de sua simples existência.
O velho homem deitou-se pensando em suas experiências, suas vivências e memórias. O vazio que sentia era exatamente pelo fato de não saber o que fazer com isso. Um desconhecida o havia salvo sem nem saber nada sobre ele, apenas por ser ele um humano. Teria ele, direito a tirar sua própria vida? Deveria ele continuar com seu pessimismo e seguir em frente com sua ideia, quem sabe no dia seguinte? Não. Ele sabia que agora, algo havia mudado, não em sua face, mas em sua mente, em sua alma.

          A jovem ignorou seu celular, não acessou seus e-mails e não quis saber de ninguém o resto do dia. Isolou-se em seu quarto, pensativa. Quase não acreditava no que havia feito, e em como aquele senhor a forçara a desistir de seus problemas para pensar nos problemas de outrem. Seria ela egoísta? Como não percebera que sua dor era apenas uma entre tantos? Será que o sentimento de ajudar outras pessoas era a resposta para sua existência vazia? Ela pensou, pela primeira vez em muito tempo; refletiu de maneira madura seus problemas e percebeu que o que a impedia de ser como os amigos era porque era diferente; simplesmente tinha interesses e vontades diferentes. Ela faria algo por outras pessoas, quisessem eles ajudar ou não. Sentiu-se completa, e dormiu.
16/03/2010

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